Transformar com o dedo grande do pé
Dezassete anos depois, o trio Fieldwork mostra no superlativo Thereupon como o jazz pode continuar a ser transformador e atento ao mundo.
A aritmética é a parte da matemática que estuda os números, as suas propriedades e as operações numéricas. Existem, contudo, situações em que a arte de calcular é desafiada pelo engenho humano, em que o cômputo resulta superior à soma das parcelas, ainda que já de si expressivas. Detenhamo-nos num exemplo: o power-trio Fieldwork, formado pelo pianista Vijay Iyer, o saxofonista alto Steve Lehman e o baterista Tyshawn Sorey, todos músicos e compositores por mérito próprio para quem o (inatacável) virtuosismo técnico é apenas húmus para interações complexas e surpreendentes. Conhecidos pela sua abordagem laboratorial, que envolve estruturas rigorosas, improvisações densas, padrões rítmicos esdrúxulos, tensões e distensões, numa dinâmica particular que evolui em tempo real, a sua música é capaz de incorporar elementos de outros tabuleiros sónicos, sejam na forma de arquiteturas composicionais complexas ou grooves influenciados pelo hip-hop. Depois de Your Life Flashes (2003) e Simulated Progress (2005), e dezassete anos após o último registo, Door, o triunvirato regressa com Thereupon, novamente com selo da influente Pi Recordings. De modo notável, o grupo continua a redefinir as possibilidades da criação musical coletiva, alargando sobremaneira o perímetro de uma configuração instrumental, que dispensa o contrabaixo. A formação volta a funcionar como uma unidade coesa, deixando de lado a estrutura tradicional tema-solos-tema em favor de uma interação mais arriscada e centrada nas características dos três músicos e no que podem fazer em conjunto. As realizações individuais impressionam. Em conjunto, estabelecem elos significativos e duradouros com diversas comunidades musicais, incluindo o jazz, a música clássica contemporânea, o hip-hop underground e a eletrónica, além de formas musicais de outras geografias. Os três últimos lançamentos de Steve Lehman demonstram o seu amplo espetro artístico: Xaybu: The Unseen (2022), com o seu grupo de avant-rap Sélébéyone; Ex Machina (2023) é uma obra importante para orquestra de jazz e eletrónica interativa, encomendada pelo IRCAM e pela francesa Orchestre National de Jazz; o seu álbum mais recente, The Music of Anthony Braxton (2025), apresenta o seu trio de longa data (com Matt Brewer no contrabaixo e Damion Reid na bateria) e um convidado (muito) especial, o saxofonista Mark Turner. Vijay Iyer é um pianista de enormes recursos que tem vindo a trabalhar em diferentes contextos, sempre atento ao que se passa à sua volta e sem calar revoltas (como a composição que escreveu dedicada a Rafeat Alareer, poeta, professor e ativista palestiniano morto durante um ataque aéreo israelita no norte da faixa de Gaza, a 6 de dezembro de 2023). Os seus álbuns mais recentes incluem Defiant Life (2025), uma suíte de duetos com o trompetista Wadada Leo Smith; Compassion (2024), o segundo álbum do seu célebre trio com Sorey e a contrabaixista Linda May Han Oh; Love In Exile (2023), colaboração com a vocalista Arooj Aftab e o baixista Shahzad Ismaily; e o álbum-retrato do Vijay Iyer compositor: Trouble, pelo Boston Modern Orchestra Project. Mestre baterista e compositor, Tyshawn Sorey recebeu o Prémio Pulitzer de Música de 2024 pela sua composição Adagio (for Wadada Leo Smith), depois de ter sido reconhecido em 2023 como finalista pela sua obra Monochromatic Light (Afterlife). Obras suas foram encomendadas, estreadas e gravadas por conjuntos e solistas de renome mundial. Os seus quatro lançamentos mais recentes — incluindo o mais recente, The Susceptible Now (2024) — contam com o pianista Aaron Diehl. Em Thereupon, o trio Fieldwork eleva a sua música a um novo patamar de inteligência e ousadia, ressaltando, mais uma vez, o desejo de derrubar fronteiras e de desbravar novos territórios sonoros. Fica clara a dívida para com a natureza exploratória e abrangente da seminal Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM); Lehman, Iyer e Sorey têm sido beneficiários de relações longevas com formações lideradas por Muhal Richard Abrams, Anthony Braxton, Henry Threadgill, Roscoe Mitchell, Wadada Leo Smith e George Lewis. Refletindo sobre o alcance do que logra o trio Fieldwork, Vijay Iyer observa que «há muito tempo decidimos por uma abordagem que simplesmente aproveita ao máximo a criatividade de cada músico. Acho que, com este grupo, o amplo escopo de nossos estudos e interesses individuais significa que a imaginação musical coletiva pode ir muito longe. Passada uma fase de alterações na formação ― que incluiu as saídas do baterista Elliot Humberto Kavee e do saxofonista Aaron Stewart ―, o trio tomou a sua forma atual em 2005. Olhando para os fortes vínculos musicais estabelecidos, desde então, no seio do trio, Lehman sublinha a «sensação avassaladora de alegria sempre que nos reunimos.» «Ao longo dos anos, desenvolvemos uma linguagem musical em conjunto, de modo que nunca precisamos explicar nada uns aos outros, contextualizar nada ou diluir nada para que todos possamos tocar. Simplesmente partimos da nossa história em conjunto e começamos a avançar», explica o saxofonista.
Thereupon apresenta composições de Iyer e Lehman, todas arranjadas coletivamente pelo trio, através de um processo de ensaios conjuntos, no qual são usadas improvisações prolongadas para as desenvolver e transformar, por vezes de forma significativa. O grupo funciona como uma entidade una, sem hierarquias ou subordinações; a partir de uma escuta atenta, respondem uns aos outros com foco e intensidade, desafiando-se mutuamente, em jogos de reforços e contrastes. Lehman explora linhas sinuosas, fazendo uso dos registos extremos do seu instrumento e de técnicas avançadas e dedilhados microtonais. A forma como Iyer toca piano e Rhodes injeta uma octanada propulsão rítmica; Sorey é um verdadeiro Midas da bateria, aportando figuras rítmicas criativas e desafiantes, que tanto podem ser poderosas como subtis, espelhando a sua formação clássica e um melodismo distinto. Se há momento em que cada instrumento parece tomar um rumo próprio, e que a estrutura montada está à beira do colapso, a ordem é restabelecida de modo por vezes miraculoso. Thereupon inclui oito peças curtas e uma mais longa. “Propaganda”, de Iyer, abre logo com um groove em alta rotação, uníssonos e contrapontos entre saxofone e piano, e a bateria de Sorey em ebulição, tudo servindo de combustível para solo vibrante de Lehman. É da pena do saxofonista que saiu “Embracing Difference”, onde os níveis energéticos se mantêm elevados, com os três músicos a urdirem apertada tapeçaria. Por momentos, Lehman sai de cena e Iyer adquire centralidade com o seu pianismo intenso, apoiado na pulsação imprevisível fornecida pelo baterista. O soprador esboça laivos melódicos que logo se esfumam e se transformam noutra coisa. De notar que as duas peças de abertura do álbum exploram uma tensão rítmica palpável. O pianista sublinha os contornos mais crepusculares de “Evening Rite”, deambulando com fluidez; Lehman dispara as suas espirais sónicas e Sorey não cessa de espantar pela forma detalhada como trabalha címbalos e peles. “Fire City” é enigmática, com o piano afiado de Iyer em movimento permanente e o saxofonista a recorrer a técnicas menos convencionais para aportar outras ideias. A temperatura sobe e a música deflagra. Steve Lehman introduz a mais angular “Domain”, característica que Iyer reforça com notas solenes que logo ganham fluidez. O saxofonista desenha figuras, algumas das quais em modo repetitivo, que conduzem ao clímax. “Fantøme”, outra de Lehman, começa com um diálogo aceso entre piano elétrico e bateria — que desperta ecos de um certo jazz-rock apenas sugerido —, a que depois se junta o saxofone em deambulações consequentes. Em “Astral”, o trio explora um lado mais sereno é contemplativo da sua música, a que sempre subjaz uma boa dose de inquietude, numa peça que se densifica à medida que evolui. A peça que dá título ao álbum, de Vijay Iyer, surpreende por via das notas que Iyer convoca, em tornos dos quais os outros dois gravitam, com Lehman a esboçar melodias. O resultado é particularmente imagético, sobretudo cortesia de Iyer, quando modifica o tempo para ir ao encontro do dinamismo harmónico. Iyer explica que “Thereupon” colhe inspiração num «momento próximo do início do Sutra de Vimalakirti, quando o mundo é mostrado como sendo muito mais do que parece: “Então, Buda tocou o solo deste universo galáctico de biliões de mundos com o dedo grande do pé e, de repente, transformou-o numa enorme massa de joias preciosas, uma magnífica coleção de centenas de milhares de aglomerados de pedras preciosas...”» A encerrar a jornada, “The Night Before”, a composição mais longa do álbum, também de Iyer, envolve-nos numa atmosfera onírica, planante, como se, de repente, fossemos transportados para um outro espaço e um outro tempo. O saxofone de Lehman oferece-nos uma melodia inebriante que tanto nos fascina pela beleza como nos deixa os sentidos em alerta. Momentos de calma na tempestade. Thereupon é um álbum superlativo, que mostra como o jazz pode continuar a ser transformador e atento ao mundo.
Fieldwork Thereupon (Pi Recordings, 2025)
Steve Lehman (saxofone alto); Vijay Iyer (piano e Rhodes); Tyshawn Sorey (bateria)
[Originalmente publicado na revista jazz.pt, em https://jazz.pt/criticas/thereupon]